Dr.Carlos Chagas
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Trecho (com pequenas adapta��es) do livro "Oswaldo Cruz & Carlos Chagas - O nascimento da Ci�ncia no Brasil", de autoria de Moacyr Scliar.

Um ilustre disc�pulo de Oswaldo Cruz: Carlos Chagas

A inf�ncia

          Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas ou, mais simplesmente, Carlos Chagas nasceu aos 9 de julho de 1878, na fazenda Bom Retiro, em Oliveira, Minas Gerais. Descendente de uma tradicional fam�lia mineira que produzia caf� e gado, criou-se ali, numa grande casa em estilo colonial, saboreando tutu, feij�o-tropeiro e p�o-de-milho; doce de leite e queijo fresco; goiabada... Oliveira era uma cidade pequena mas com uma forte tradi��o de cidadania; o ensino p�blico era muito desenvolvido, havia uma pequena mas atuante imprensa, representada pela Gazeta de Minas. A fam�lia de Carlos Chagas tinha marcante presen�a na vida cultural da cidade. Carlos, que cedo perdeu o pai, respeitava muito seus tios, mas foi sobretudo sua m�e, Mariana C�ndida, mulher digna e com muita consci�ncia do dever p�blico, quem o influenciou. Mesmo adulto, Chagas n�o ousava nem sequer fumar em sua presen�a – seria falta de respeito.

          Iniciou seus estudos num internato jesu�ta no munic�pio paulista de Itu, e completou-os em S�o Jo�o del Rey, no Col�gio S�o Francisco, onde teve um excelente professor. Padre Sacramento ia para o campo junto com os alunos observar e classificar plantas e animais – atividade que logo despertou no garoto Carlos o interesse pelas ci�ncias naturais. Terminado o col�gio, a m�e, com sua peculiar determina��o, decidiu que ele deveria seguir o curso de engenheiro de minas. Na verdade, Carlos Chagas queria ser m�dico, como dois de seus tios; mas, para satisfazer Mariana C�ndida, cedeu na escolha. Foi reprovado nos exames vestibulares. Na mesma �poca, adoeceu – alimentando-se mal, teve, ao que parece, car�ncia de vitaminas – e voltou para casa. Tratou-o um dos tios m�dicos, e decerto as longas conversas que tiveram refor�aram em Carlos a vontade de seguir medicina. O tio e o av� encarregaram-se de convencer a m�e. Mariana levava mais f� na engenharia – coisa objetiva, "concreta" – do que em cuidar de doentes, mas acabou concordando.

          Carlos Chagas foi aprovado para a ent�o Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que come�ou a cursar em 1897. N�o conhecia o Rio, mas v�rios amigos, mineiros como ele, viviam na cidade. Um primo, Augusto das Chagas, era inclusive deputado federal.

          Foi morar em uma pens�o para estudantes na Tijuca, bairro aristocr�tico, muito bonito e arborizado. Descobriu logo, por�m, que no Rio de Janeiro daquela �poca a Tijuca era uma exce��o: no Catumbi, no Rio Comprido, na Lapa, as casas eram miser�veis, as condi��es de higiene, p�ssimas – as doen�as ali campeavam. Mas, embora fosse uma �poca de grande agita��o pol�tica, Carlos Chagas n�o se engajou em nenhum partido, tampouco aderiu, como era moda entre os jovens de sua idade, ao pacitivismo que, como v�mos na hist�ria de Oswaldo Cruz, transformou-se no, Brasil, em uma forma de articula��o pol�tica. Que a Carlos Chagas n�o interessava. Pretendia dedicar-se apenas � medicina.

Na Faculdade

          O estudo da medicina era uma coisa solene. Os alunos iam �s aulas de terno, colete, colarinho duro e gravata – o que, no t�rrido clima do Rio, era um supl�cio. Os professores vestiam com mais apuro ainda: sobrecasaca ou fraque cinza, chap�u coco. Ou seja: imitavam os europeus, coisa que Oswaldo Cruz tamb�m fez ao votar de Paris. Chegavam � faculdade em elegantes caleches (carruagem de quatro rodas e dois assentos, puxada por uma parelha de cavalos), entravam no audit�rio – onde j� estavam os alunos – por uma porta especial. As aulas eram verdadeiras confer�ncias proferidas em tom doutoral. Muitos dos catedr�ticos eram famosos: Chap�t-Prevost , professor de Histologia (a ci�ncia que estuda os tecidos) e conhecido cirurgi�o, celebrizou-se com a dific�lima opera��o em que separou gem�as xip�fogas, unidas pelo esterno (o osso no centro do peito). Tamb�m famoso era Miguel Couto (1865-1934), grande cl�nico e tamb�m mais tarde pol�tico, de quem Chagas se tornou disc�pulo; Couto mostrava-lhes casos de doentes e orientava-o nas leituras m�dicas. Um conselho foi particularmente �til: as recomenda��es para conhecer as obras de Claude Bernard e Louis Pasteur. Esses dois cientistas franceses marcaram a hist�ria da medicina.

          A prop�sito, Chagas era um grande leitor. Devorava as obras de Jos� de Alencar, Bernardo Guimar�es, Artur de Azevedo, Machado de Assis, e tamb�m de Alexandre de Herculano, E�a de Queiroz, Anatole France. Lia inclusive em franc�s, que dominava, e que era, o idioma da cultura universal, o equivalente ao ingl�s nos dias de hoje. E este vasto conhecimento, sem d�vida, ajudou muito em sua carreira. Um bom cientista � aquele que n�o apenas conhece o campo em que trabalha, a sua especialidade, mas tem tamb�m uma vis�o abrangente do mundo e da sociedade, coisa que bons escritores, como Machado de Assis, proporcionam.

          Al�m de Miguel Couto, um outro m�dico influenciou o jovem Carlos Chagas: Francisco Fajardo, especialista em mal�ria, professor da Faculdade. Fajardo tomou a iniciativa de dar um curso sobre a doen�a; para isso, precisava de um auxiliar, algu�m que soubesse preparar uma l�mina com sangue de pacientes, identificando, ao microsc�pio, o agente causador da mal�ria. Descobriu, para a sua surpresa, que Carlos Chagas, entao no quarto ano de Medicina, cumpria perfeitamente tais tarefas. Ali�s, Carlos era um estudante exemplar; n�o apenas no laborat�rio se sa�a bem, seguia com maestria tamb�m nas disciplinas cl�nicas. Trabalhou com dedica��o assombrosa nas enfermarias da Santa Cruz. Fazia cont�nuos plant�es, chegando, certa vez, a passar uma semana sem ir para a casa; acompanhava um colega enfermo de febre amarela, seu parente, que veio a morrer da doen�a. Entre os colegas, era conhecido como "estudante de duas velas". Naquela ocasi�o, estudava-se � luz de velas – duas, no caso de Carlos Chagas, o que significava um longo tempo de estudo. S� sa�a para passeios ao zool�gico.

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Carlos Chagas "o duas velas". Desenho de S�rgio Kon.

          Contudo, foi uma festa que lhe mudou a vida. A convite de Miguel Couto, participou numa reuni�o em casa do senador (por Minas Gerais, naturalmente), Fernando Lobo. Ali conheceu �ris, a filha mais velha do anfitri�o, por quem se apaixonou. Numa �poca muito recatada como aquela, namorar n�o era f�cil. Mas Carlos foi ajudado por Fajardo, que lhe trouxe um bilhete da mo�a: ela queria v�-lo, no domingo, no bonde que passava as quatro da tarde em frente a casa do senador. E foi o que Carlos fez: tomou o bonde para que �ris o visse, mesmo de longe. Esse namoro a dist�ncia durou algum tempo, muito prejudicado pela irregularidade do hor�rio dos ve�culos, que eram puxados por inconfi�veis muares ou se atrasavam por causa das chuvas. A m�e de �ris tamb�m n�o se mostrava muito favor�vel ao romance. Carlos Chagas era ainda estudante, sem meios de ganhar a vida. Al�m disso, a racista Maria Lobo suspeitava de que ele, apesar de loiro e de olhos azuis, tivesse sangue negro. �ris, contrariada em seu amor, trancou-se no quarto, onde fez greve de fome. Os pais por fim consentiram no namoro, que por fim se transformaria, em 1904, em casamento.

          Em 1902, prestes a terminar o curso, Carlos Chagas encontrou um m�dico que encaminharia sua carreira. Naquela �poca, para receber o diploma, era necess�rio elaborar uma tese de doutoramento – uma exig�ncia depois abolida, sobretudo pela m� qualidade dos trabalhos apresentados. A conselho de Francisco Fajardo, procurou Oswaldo Cruz no Instituto de Manguinhos, por ele dirigido. Impressionado com o conhecimento e com a seriedade do jovem doutorando, Oswaldo sugeriu-lhe que estudasse a mal�ria que era ent�o, como ainda hoje, uma doen�a muito frequente e que causava numerosas mortes. Carlos Chagas come�ou a frequentar o Instituto. Hoje, o trajeto do centro do Rio at� a sede do Instituto pode ser feito de �nibus ou carro, em pouco tempo. Naquela �poca, por�m, o "�nico meio de transporte era uma lancha que sa�a do cais Pharoux (o Cais Pharoux ficava aproximadamente onde hoje s�o as adjac�ncias da regi�o da Pra�a XV; nas proximidades de onde est� o Museu Hist�rico Nacional) �s sete da manh�, regressando �s dezoito horas. E Oswaldo Cruz fazia quest�o que o hor�rio fosse cumprido rigorosamente.

Come�ando a carreira

          A tese foi defendida em 1903, e logo depois Oswaldo Cruz convidou-o para trabalhar no Instituto. Carlos, entretanto, achava que sua verdadeira voca��o era cuidar de doentes; assim, pediu tranfer�ncia para o Hospital de Jurujuba, tamb�m do governo, onde internavam-se doentes portadores de peste bub�nica – � �poca, uma doen�a muito comum. A o mesmo tempo, abriu consult�rio no centro do Rio. Recebia doentes que lhe eram enviados por Miguel Couto e por Salles Guerra, amigo de Oswaldo Cruz. Era um bom m�dico, mas n�o sabia cobrar; ao contr�rio, �s vezes dava dinheiro aos pacientes para que comprassem os rem�dios por ele prescritos. Em consequ�ncia, a cl�nica n�o lhe cobria as despesas, mesmo porqque �quela altura j� estava casado e tinha um filho.

          Foi ent�o que ocorreu uma nova, e decisiva, virada em sua vida. A Companhia Docas de Santos estava realizando, em Itatinga, no litoral paulista, uma importante obra portu�ria – que se viu paralisada devido a mal�ria que grassava entre os oper�rios. Solicitaram a Oswaldo Cruz que indicasse um m�dico capaz de enfrentar a situa��o. Carlos Chagas – por causa, evidentemente, de sua tese sobre mal�ria – era a pessoa talhada para isso. �quela altura, j� se conhecia bem o mecanismo de transmiss�o, e o plano de Carlos Chagas consistia basicamente em combater o mosquito transmissor da doen�a, o que foi feito com grande �xito: em tr�s meses a epidemia estava praticamente controlada.

          Voltando ao Rio, Chagas foi convidado para trabalhar na equipe de Manguinhos, capitaneada por Oswaldo Cruz. Com not�veis cientistas – Rocha Lima, Arthur Neiva, Beaurepaire Arag�o, Ezequiel Dias – e com a regular participa��o de pesquisadores europeus especialmente convidados, Manguinhos era a pr�pria imagem da medicina cient�fica no Brasil. Chagas colaborou especialmente com Max Hartmann, renomado especialista em protozo�rios, categoria na qual se enquadra o plasm�dio, agente causador da mal�ria. Tamb�m continuou com seu trabalho de campo, participando do combate � mal�ria no vale de Xer�m, de onde era captada a �gua para abastecimento do Rio de Janeiro.

A grande descoberta

          Em 1909, Chagas foi convidado para um trabalho que, em apar�ncia semelhante aos que j� havia executado, seria, na verdade, uma nova e grande oportunidade em sua vida dedicada � ci�ncia.

          A Estrada de Ferro Central do Brasil participava de um grande projeto: unir, por ferrovia, o norte e o sudeste do Brasil, de Bel�m do Par� ao Rio de Janeiro. As obras, contudo, estavam paralisadas – por causa da habitual mal�ria – na altura do vilarejo chamado Lassance, no sert�o mineiro. De novo Oswaldo Cruz foi consultado; de novo indicou Carlos Chagas, que partiu para o local acompanhado de Belis�rio Penna, levando inclusive equipamento laboratorial.

          Em Lassance, Chagas encontrou numerosos casos de uma doen�a que nada tinha a ver com a mal�ria. Muitas pessoas queixavam-se daquilo que chamavam de "baticum":palpita��es, sensa��o de que o cora��o n�o batia normalmente. E n�o era imagina��o. Havia mesmo muitos casos de insufici�ncia card�aca, isto �, situa��es em que o cora��o falhava. E havia tamb�m casos de morte s�bita, provavelmente pela mesma causa.

          Naquela �poca o diagn�stico que se fazia para casos assim era o de s�filis. Esta doen�a � causada por um germe chamado treponema, que se transmite pelo contato sexual. Nos est�gios avan�ados, a doen�a ataca o aparelho cardio-vascular. Era muito freq�ente, principalmente porque n�o havia tratamento - a penicilina, que � muito eficaz contra o treponema, ainda n�o fora descoberta. O n�mero de casos era muito grande; "no Brasil � preciso pensar sifiliticamente", diziam os m�dicos. Em Lassance havia uma fonte evidente de cont�gio: as prostitutas que acorriam ao lugar para "atender" aos trabalhadores da estrada de ferro. J� a gente do lugarejo, desnutrida, enfraquecida pela mal�ria, n�o parecia muito chegada ao sexo. E, entre essas pessoas, o n�mero de doentes era muito grande.

          Esse fato chamou a aten��o de Chagas e mostrou sua voca��o – o verdadeiro cientista � aquele que n�o se deixa enganar pelas apar�ncias, vai al�m e procura explorar todos os aspectos do fen�meno que est� observando, inclusive, e principalmente, os mais intrigantes. Isso lembra, ali�s, um famoso di�logo entre Sherlock Holmes e seu companheiro, doutor Watson. Sherlock Holmes � um personagem criado pelo ingl�s Arthur Conan Doyle, que al�m de escritor era m�dico, e exerceu a medicina numa �poca em que se valorizava bastante o racioc�nio na pr�tica cl�nica. O doutor muitas vezes agia como um verdadeiro detetive, buscando o vil�o causador da doen�a. No referido di�logo, Holmes est� conversando com Watson acerca de um crime e refere-se ao "curioso incidente" ocorrido � noite com o c�o de guarda da casa que fora cen�rio do delito. "Mas o c�o n�o fez nada", protesta Watson. "Isto � que � curioso", replica Holmes. De fato, o c�o deveria ter latido � aproxima��o de algu�m estranho. Por que n�o o fez?

          Essa mesma curiosidade assaltou Chagas. O senso comum apontava para a s�filis; mas, e se n�o fosse s�filis? Se fosse uma outra enfermidade? Uma outra doen�a? O que estaria causando? Como seria transmitida?

          Chagas estava �s voltas com essa d�vidas, quando um engenheiro da estrada de ferro, Cantarino Motta, fez um coment�rio sobre a enorme quantidade de "barbeiros" no local. Barbeiro � a denomina��o para insetos semelhantes a percevejos; s�o bichos noturnos: de dia escondem-se nas frinchas e frestas das casas de taipa ou pau-a pique, � noite saem para picar os moradores, de cujo sangue se alimentam. Como as pessoas em geral est�o cobertas, eles escolhem a face – da� o nome.

          Examinando ao microsc�pio o conte�do do tubo digestivo desses insetos, Chagas fez uma grande descoberta: havia ali tripanossomos, um parasita composto de uma c�lula s�. Na �frica, um certo tipo desse parasita causa a doen�a do sono, assim chamada pela sonol�ncia decorrente do comprometimento do sistema nervoso central. Naquela �poca, essa mol�stia estava em evid�ncia; muitas regi�es atingidas eram col�nias de pa�ses europeus, que para l� mandavam seus pesquisadores.

          Ora, a doen�a de Lassance poderia ser causada por um tripanossomo. Chagas decidiu verificar experimentalmente, em macacos, a poss�vel capacidade de esse parasita infectar mam�feros. Mas os sag�is da regi�o, freq�entemente infectados, n�o serviam para isso. Enviou, ent�o, a Oswaldo Cruz alguns barbeiros, pedindo que tentasse infectar os macacos do laborat�rio – o que Oswaldo fez. V�rios dias se passaram, dias de espera ansiosa. E ent�o chegou a mensagem de Manguinhos: um dos macacos adoecera. Chagas deveria ir a Manguinhos identificar o tripanossomo. Partiu imediatamente.

          "Quantas esperan�as e quantas ang�stias lhe ter�o assaltado o esp�rito na longa viagem que empreendeu?", pergunta Carlos Chagas Filho no livro que escreveu sobre o pai. E era, de fato, uma longa viagem, com muitas baldea��es e atrasos. Finalmente chegou. Oswaldo Cruz, t�o ansioso como Chagas, mandara um autom�vel busc�-lo na esta��o ferrovi�ria, de onde imediatamente seguiu para o Instituto. Ali estava o macaco infectado, bastante debilitado. O cientista colheu o sangue e examinou ao micrsc�pio: encontrou o mesmo tripanossomo a que verificara nos barbeiros e nos macacos de Lassance, posteriormente denominado Tripanossomo cruzi, em homenagem a Oswaldo.

          A infec��o de mam�feros pelo T. cruzi estava comprovada. E quanto � infec��o de seres humanos?

          No dia 14 de fevereiro de 1909, foi trazida ao caramanch�o onde Chagas �s vezes atendia pacientes – consult�rio ali n�o havia – uma menina de nove meses, Berenice, que ele j� conhecia e por quem nutria sincera afei��o. A menina apresentava febre alta e inchume no rosto e no corpo. O caso n�o era parecido aos de outros doentes de Lassance; mesmo assim Chagas resolveu colher o sangue da doentinha. Examinou-o ao microsc�pio e ali estava o Tripanossomo cruzi. Era o primeiro caso em que comprovava a associa��o do parasito com a doen�a – e com isso Chagas completava um trabalho extraordin�rio, jamais realizado na medicina: ele descobrira uma nova doen�a, identificara o agente causador e o mecanismo de transmiss�o.

A repercuss�o

          O passo seguinte era divulgar a descoberta, o que Chagas fez em revistas nacionais e estrangeiras. A Academia Nacional de Medicina constituiu uma comiss�o de renomados m�dicos para ir a Lassance avaliar de perto o trabalho. Conclu�da a auditoria, reuniram-se num modesto jantar, � luz de lampi�es, e foi ali que Miguel Couto prop�s: a doen�a deveria receber o nome de Chagas, seu descobridor. Uma proposta que foi aceita por todos os membros da comiss�o.

          Sem demora a doen�a come�ou a ser identificada em outros pa�ses das Am�ricas. Sucederam-se as homenagens, que culminaram, em 1912, com o Pr�mio Schaudinn, uma esp�cie de Nobel da microbiologia, de cujo j�ri participaram os nomes mais famosos da �rea.

          Outro talvez ficasse curtindo a gl�ria. N�o Chagas. Ele era um cientista, a ci�ncia era a raz�o de ser de sua vida. Naquele mesmo ano seguiu para a Amaz�nia acompanhado de uma equipe, a fim de realizar um levantamento dos problemas de sa�de da regi�o – trabalho iniciado pelo pr�prio Oswaldo Cruz. Um ano durou essa dif�cil miss�o, realizada em condi��es as mais prec�rias; muitas vezes dormia ao relento, em redes ou em camas improvisadas.

          Voltando ao Rio, foi convidado a ir � Argentina, onde sua descoberta era colocada em d�vida por ningu�m menos que Rudolph Kraus, diretor do Instituto de Bacteriologia de Buenos Aires. Kraus alegava ter encontrado em regi�es da Argentina barbeiros com tripanossomos – sem a paralela ocorr�ncia de casos. Chagas ponderou que o parasito talvez ainda n�o tivesse se adaptado aos seres humanos, ou – hip�tese mais prov�vel – que os m�dicos n�o estivessem familiarizados com o diagn�stico da doen�a.

          Durante esta visita � Argentina ocorreu um incidente pitoresco. Chagas foi visitar o laborat�rio de Kraus e saiu de l� com um enorme sobretudo, que lhe chegava aos p�s: era o sobretudo do pr�prio Kraus, que levara por engano. Chagas era o prot�tipo do cientista distra�do, desses que at� se transformam em personagens de anedotas. Uma vez, em sua pr�pria casa, a empregada serviu-lhe um caf�. Ele tirou dinheiro do bolso e depositou-o na bandeja, "pagando" pelo caf�. Numa outra vez, recebeu a visita de um jovem m�dico que vinha, com a esposa, agradecer-lhe um favor e demorou mais que o habitual nessas visitas. L� pelas tantas, Chagas, esquecendo que estava em sua pr�pria casa, olhou as horas e disse � mulher: "�ris, est� na hora de voltar para a casa". Mas sua distra�ao chegou ao auge quando, numa cerim�nia internacional em Bruxelas, recebeu do rei Alberto, da B�lgica, uma importante condecora��o – esqueceu-a na mesa do banquete. Um ajudante-de-ordens do rei levou-a depois para o hotel.

          Neste epis�dios ele poderia estar sendo v�tima de seu pr�prio inconsciente, como diz Freud. Afinas, raras coisas s�o piores do que uma visita chata – e talvez ele n�o valorizasse tanto assim a condecora��o real (ou n�o valorizasse como devia o pr�prio trabalho).

Chagas, o administrador de sa�de

          Voltando da Argentina, recebeu uma triste not�cia: Oswaldo Cruz, que h� tempos estava doente, piorara muito e falecera a 11 de fevereiro de 1917. Para Chagas, quemal conhecera o seu pr�prio pai, Oswaldo Cruz havia sido, mais que um mestre, uma verdadeira figura paterna. Ficou muito abalado. Mas, sendo o sucessor natural do grande sanitarista, naquele mesmo fevereiro foi nomeado para a dire��o do Instituto. Isso o obrigou a se afastar da pesquisa laboratorial; da� em diante seria, antes de mais nada, um administrador. E um administrador muito solicitado pelo governo.

          J� no ano seguinte eclodiu no pa�s uma epidemia da tristemente famosa gripe espanhola (n�o se sabe bem por que assim foi denominada; parece que come�ou na Espanha, mas isso n�o � certo). Da Europa devastada pela Primeira Guerra, a doen�a alastrou-se pelo mundo, levada inclusive pelas tripula��es de navios. No Rio de Janeiro, a doen�a fez logo numerosas v�timas. Numa tese do ano posterior, conta o doutorando Eduardo Imbassahy: "A popula��o quase inteira tombou ao sopro terr�vel e fulminante que nos vinha das plagas ocidentais e, de um momento para outro, uma das mais alegres cidades do mundo surgiu silenciosa, erma e triste, com as ruas abandonadas, as casas fechadas, o com�rcio parado, os ve�culos im�veis". N�o havia sequer condi��es para enterrar o grande n�mero de mortos; presos da penitenci�ria faziam o servi�o. Faltavam caix�es, de modo que os corpos eram atirados em valas comuns, ou recolhidos por caminh�es particulares que passavam pelas ruas, os motoristas gritando" "Tem cad�ver a�?".

          N�o havia vacina contra a doen�a, nem antibi�ticos para tratar suas complica��es. Tudo o que podia ser feito era providenciar locais de atendimento e leitos hospitalares para os enfermos, tarefa da qual Chagas, designado pelo Presidente da Rep�blica, Venceslau Br�s, se encarregou. Era um trabalho essencialmente administrativo, mas muito dif�cil: Chagas, ele pr�prio doente, tinha tamb�m de cuidar de sua fam�lia, a esposa, gravemente enferma, e os dois filhos. Mas ele se saiu t�o bem, que foi convidado por l�deres pol�ticos a candidatar-se ao senado. Recusou.

          Ainda nessa �poca, encarregou-se de organizar, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a cadeira de Medicina Tropical. "Medicina Tropical" � uma express�o que j� n�o se usa mais (em Manaus existe o Hospital de Medicina Tropical), mas no s�culo XIX e princ�pios do s�culo XX gozava de prest�gio, por uma raz�o mais pol�tica do que geogr�fica: "tr�picos eram os lugares onde se desenvolviam arrojados empreendimentos colonialistas ou empresariais – minera��o, explora��o de produtos vegetais, constru��o de ferrovias e de grandes obras, como o Canal do Panam�. Doen�as chamadas "tropicais", como febre amarela, mal�ria, doen�a do sono, leishmaniose e outras, representavam um problema, tanto pelas vidas humanas que ceifavam, como pelos preju�zos econ�micos que produziam. Com o fim dos imp�rios coloniais e com a constata��o de que os micr�bios n�o tinham prefer�ncia s� pelos subdesenvolvidos, surgiu a express�o, cientificamente mais exata, doen�as transmiss�veis.

A gl�ria – e a pol�mica.

          O prest�gio de Chagas era enorme. Viajava pelo mundo todo, participando de congressos e reuni�es cient�ficas. Recebeu comendas e t�tulos, conferidos por v�rios governos, e foi convidado para o Comit� de Higiene (outro termo em desuso) da Sociedade das Na��es, precursora da Organiza��o das Na��es Unidas, ONU, que tem como um de seus ramos a Organiza��o Mundial da Sa�de. Nessas viagens, ficou conhecendo expoentes da medicina mundial. Foi em Toronto que encontrou os m�dicos e fisiologistas canadenses Frederick Banting (1891-1941) e Charles Best (1899-1978) que, alguns meses antes de sua visita, haviam descoberto a insulina – uma revolu��o no tratamento do diabete. Coincid�ncia: pouco depois, a pr�pria esposa de Chagas revelou-se diab�tica e tratou-se, com sucesso, com a insulina de Banting e Best.

          Apesar desse prest�gio, ou justamente por causa dele, Carlos Chagas se viu envolvido em pol�micas e incidentes desagrad�veis. A primeira delas ocorreu na Academia Nacional de Medicina em 1922. Alguns membros da institui��o – que congregava m�dicos famosos, mas tinha escasso papel no cen�rio cient�fico – colocaram em d�vida o trabalho de Chagas. A doen�a por ele descrita n�o existiria, ou ent�o seria um problema de sa�de restrito � regi�o de Lassance, atingindo no m�ximo algumas dezenas de pessoas. Essa pol�mica estava associada, na verdade, a uma briga de poder e prest�gio, mas Chagas saiu vitorioso, mesmo porque o tempo encarregou-se de mostrar que ele tinha raz�o.

          Outro incidente ocorreu quando voltava de uma viagem � Europa, em 1930. Mal o navio atracara, um oficial subiu a bordo e deu-lhe voz de pris�o. Naquele ano ocorrera a famosa Revolu��o que conduziu Get�lio Vargas ao poder. Mineiro, Chagas dera apoio � Alian�a Liberal, formada por pol�ticos de seu estado e de S�o Paulo, que se haviam oposto ao movimento. Entretanto, o motivo de sua pris�o (que durou poucas horas) n�o foi exatamente esse, mas a den�ncia de um m�dico, um urologista que tinha como s�cio um charlat�o capaz, segundo afirmava, de curar a lepra, doen�a para a qual n�o havia tratamento eficaz naquele tempo. Chagas, na qualidade de Diretor de Sa�de P�blica, cargo tamb�m exercido por Oswaldo Cruz, mandar fechar o consult�rio do homem – que aproveitou a primeira oportunidade para se vingar.

          Chagas era criticado por v�rios motivos. Por exemplo, pelos tr�s cargos que detinha. Austrag�silo de Athayde, mais tarde presidente da Academia Brasileira de Letras e, � �poca, jovem jornalista, escreveu: "O dr. Chagas quer figurar em todas as folhas de pagamento do Tesouro Nacional: Diretor do Instituto de Manguinhos, Diretor do Departamento Nacional de Sa�de P�blica, professor de Doen�as Tropicais da Faculdade de Medicina." O que n�o deixava de ser verdade, embora Chagas n�o recebesse como diretor do Instituto. Al�m disso, at� h� pouco tempo era comum que m�dicos trabalhassem em v�rios lugares mesmo no servi�o p�blico: a Constitui��o permitia.

          Da era Oswaldo Cruz, Chagas tamb�m herdou pol�micas. Uma: a vacina��o anti-vari�lica obrigat�ria que ele, como seu mestre, defendia. A var�ola era uma doen�a epid�mica da qual o mundo veio a se livrar no final da d�cada de 1960 gra�as, exatamente, �s campanhas de vacina��o; naquele tempo, por�m, ainda havia discuss�es a respeito. Dois tipos de argumento eram usados. Na Alemanha, onde a vacina��o era obrigat�ria, dizia-se que a var�ola tinha causado 140 mil mortos, uma meia verdade: a vacina era obrigat�ria, sim, mas s� para militares, e os mortos eram civis. Quando a vacina��o estendeu-se a toda popula��o, a doen�a praticamente desapareceu. O outro argumento, j� mencionado, era de ordem filos�fica e pol�tica: a obrigatoriedade violentava a liberdade individual. Mas, observava Chagas, "os que aconselham o povo a rebelar-se contra a vacina��o compuls�ria vacinam-se e fazem com que seus filhos sejam vacinados". Ou seja: fa�a o que eu digo, mas n�o fa�a o que eu fa�o. De qualquer maneira, havia um certo ran�o autorit�rio nessas medidas obrigat�rias, e esta foi a causa da disputa em torno do C�digo Sanit�rio que Chagas, na linha de Oswaldo, estava propondo.

          � preciso dizar que, nesse meio tempo, a Diretoria Nacional de Sa�de P�blica se tinha transformado, em 1920, por decreto do presidente Epit�cio Pessoa, em Departamento Nacional de Sa�de P�blica, o que representava mais autonomia e mais recursos. Na dire��o do Departamento, Chagas tomou dois tipos de medidas. Uma de car�ter interno, criando Diretorias que deveriam se encarregar dos v�rios problemas de sa�de p�blica: fiscaliza��o dos alimentos, tuberculose, lepra, doen�as ven�reas. Eram atividades verticais; do Rio de Janeiro, o org�o encarregado controlava as a��es executadas em todo o pa�s. A vantagem disso era a a��o unificada; a desvantagem, o fato de marginalizar estados e munic�pios, que se viam no papel de meros executores.

          A outra medida foi o C�digo Sanit�rio. Com 1194 artigos, o C�digo regulamentava – do �ngulo da sa�de p�blica – praticamente todas as atividades do ser humano. Dizia como as pessoas devem morar, como devem lavar a roupa, como devem construir as casas. De novo: do ponto de vista t�cnico e cient�fico, o c�digo tinha fundamento, mas a maneira como foi implementado acabou gerando protestos, inclusive e principalmente da imprensa, que o atacava quase com a mesma veem�ncia despejada contra Oswaldo Cruz. Um dos artigos, por exemplo, proibia est�bulos em �reas residenciais. Dizia-se que Chagas estava agindo em causa pr�pria: queria eliminar um est�bulo que existia perto de sua pr�pria casa, na Rua Paissandu. Propriet�rios de est�bulos, indignados, quase invadiram a resid�ncia dele.

          Problemas ainda maiores surgiram no final de sua gest�o, em 1926. O primeiro deles foi um surto de febre amarela, resultado, segundo os opositores de Chagas, de um desleixo no combate � doen�a que, contudo, n�o havia sido erradicada. A erradica��o de uma doen�a significa a n�o exist�ncia de casos. � diferente de controle da doen�a, situa��o na qual os casos existem, mas a sa�de p�blica tem conhecimento deles e pode impedir a dissemina��o da doen�a. A febre amarela chegou, em alguns momentos, a estar pr�xima do controle, mas nunca foi erradicada. Portanto, poderia voltar – como aconteceu, e como tem acontecido recentemente.

          O segundo problema foi igualmente grave: um surto de var�ola eclodiu quando Chagas estava em viagem. Regressando, ele investigou o problema e descobriu, para sua desagrad�vel surpresa, que a vacina n�o funcionava por defici�ncias t�cnicas em sua prepara��o. N�o hesitou: foi � imprensa e contou o que estava acontecendo. Mais uma prova de seu inabal�vel car�ter.

          Morreu relativamente cedo, aos 54 anos, j� transformado em uma figura lend�ria da Medicina e da Ci�ncia no Brasil.

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